quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Azenilto Brito - O Aparente Déficit Normativo da Bíblia e Suas Soluções

O Aparente Déficit Normativo da Bíblia e Suas Soluções

por

Gottfried Brakemeier

Em sua qualidade de testemunho, a Bíblia parece pouco apropriada para servir de cânon. Composta de uma seleção de livros, provenientes de diversas épocas e lugares, ela não apresenta uma "doutrina" uniforme. Referindo-se a uma história de fé, falta-lhe coesão dogmática. As vozes que nela se manifestam às vezes até mesmo destoam. Já o dissemos: A Bíblia é um livro plural. [40] Em que consiste sua unidade? Será ela realmente suficiente para nortear a vida cristã? A resposta, por demais vezes, é negada. Sustenta-se ser necessária uma instância além da Bíblia para interpretá-la ou complementá-la em sua função orientadora. São várias as formas em que isso acontece.

A primeira é a católico-romana. Atribui ao magistério da Igreja [41], concentrado na instituição do papado, a função de definir a verdade cristã. A rigor cabe aos bispos, sucessores dos apóstolos, essa função. Mas o colégio episcopal é encabeçado pelo papa. Nenhum bispo está autorizado a discordar do supremo pontífice romano. Cabe a este, com a assistência do Espírito Santo, o privilégio da definição do dogma e, conseqüentemente, a interpretação bíblica em última instância. A Bíblia continua sendo considerada a parte mais preciosa da tradição. E, no entanto, a Igreja, mediante seu ministério, se coloca de fato acima do cânon. Fica descartado o "sola scriptura".

Outra é a entusiasta. Afirma que, para entender a Bíblia, se faz necessário receber antes o Espírito Santo. Somente a pessoa espiritual poderia interpretar corretamente a Bíblia. O problema dessa concepção consiste em fazer depender a interpretação bíblica de uma revelação anterior à leitura. O Espírito, assim se apregoa, comunica-se independentemente da palavra [42]. Ele se instala no coração das pessoas "diretamente de cima", habilitando-as dessa maneira a compreender a Sagrada Escritura. Não é a Bíblia que abre os olhos e a mente das pessoas, e, sim, é a pessoa espiritual que abre os segredos da Bíblia. Assim sendo, também neste caso se corrompe o "sola scriptura". A autoridade da Bíblia fica condicionada à autoridade da pessoa iluminada pelo Espírito.

■ Também a Igreja protestante não está imune contra a tentação de estabelecer uma instância normativa ao lado ou acima da Escritura. Isto acontece, quando os escritos confessionais, a exemplo da Confissão de Augsburgo ou a teologia do próprio Lutero, são tratados como sendo infalíveis, convertendo-se em parâmetro hermenêutico absoluto. Confessionalidade, então, se transforma em "confessionalismo". É bem verdade que não é esta a "pura doutrina", nem luterana nem reformada. Pois oficialmente os escritos confessionais são qualificados como normas sujeitas à Bíblia. Esta é a "norma normans", enquanto a confissão é a "norma normata". Portanto, também a confissão possui normatividade. No entanto, é normatividade derivada, não normatividade original. [43] Esta cabe somente à Bíblia. É como no caso do sol e da lua. A confissão se assemelha a esta última, recebendo toda luz da Sagrada Escritura. Nem sempre, porém, a prática e o discurso coincidem.

■ Existem mais outras formas de domesticar a Bíblia e de aplicar rédeas à sua pluralidade. Na verdade, isto acontece sempre que uma instância alheia, externa, predeterminada, estabelece os padrões da normatividade. A Bíblia, nessas condições, torna-se vinculante somente "na medida em que" endossa certos projetos, sejam eles de ordem política, racial, econômica e mesmo religiosa. Ela deve sancionar, mas está proibida de criticar. Sofre abuso para justificar "reinos humanos" em prejuízo do "Reino de Deus". Instalam-se outros "magistérios" ao lado da Escritura, que a amordaçam e lhe censuram o conteúdo. O suposto déficit normativo da Bíblia está sendo compensado por preceitos e preconceitos "dogmáticos" que se lhe impõe.

Seja admitido que a variedade do testemunho bíblico pode irritar. Dizia E. Käsemann, que o cânon do Novo Testamento como tal (!) fundamenta antes a multiplicidade das confissões do que a unidade da Igreja. [44] O "sola scriptura" implica riscos. Todavia, o primado da Escritura é a única barreira eficaz contra os desvios da Igreja e o arbítrio dos intérpretes. Como autoridade suprema, a Bíblia sempre levantará sua voz em protesto contra manipulação. Somente onde se permite à Bíblia o livre discurso, ela vai desenvolver força normativa e reformadora. A exclusividade canônica da Sagrada Escritura exige prestação de contas das respectivas exegeses. Igreja luterana arrisca a tese da suficiência normativa da Bíblia. Ela terá que comprová-la na prática. Mas descobriu nela poderosa arma contra a usurpação de autoridade divina na história e, por isso, o indispensável instrumento de fidelidade ao evangelho.

Resta dizer que a sensação da insuficiência normativa poderá decorrer não só da pluralidade, como também da percepção dos condicionamentos contextuais do testemunho bíblico. O mundo da democracia, da tecnologia, da racionalidade moderna são fenômenos estranhos do antigo povo de Israel e da primeira cristandade. Por isto mesmo, a Bíblia não contém resposta direta a uma série de interrogantes da atualidade. Ela foi escrita em sociedade imperial, patriarcal, escravagista, sendo nítidos os reflexos deste mundo nos textos. Basta lembrar Rm 13.1-7 com respeito às autoridades políticas, Ef 5.22-33 referente à submissão da mulher e 1Tm 6.1 com relação aos deveres dos escravos. Quem busca diretrizes concretas para esses e semelhantes assuntos acaba decepcionado. O que resulta disso? Deverá ser questionada a "canonicidade" da Bíblia por essa razão, exigindo-se que sejam introduzidos critérios adicionais ou até mesmo alternativos para definir normatividade hoje? [45] Ora, novamente tudo depende da conceituação do que seja "normativo". Será a letra da Bíblia? Será o patrimônio cultural? Quem estabelece os parâmetros de validade "canônica" hoje? Nós voltaremos à matéria.

No contexto dessa discussão, a definição da relação que há entre Escritura e Tradição tem desempenhado função crucial. A autoridade última estaria com esta ou com aquela? Importa tecer algumas reflexões sobre esse assunto polêmico: [46]

A Igreja vive de memória, de história lembrada, de tradição. Já no Novo Testamento, especialmente nas cartas pastorais, é dada ênfase na "paradosis", respectivamente na "paratheke", isto é, no "legado" apostólico. Diz o apóstolo Paulo que passou adiante às comunidades o que ele próprio recebeu (cf. 1Co 15.3). Sem memória, a Igreja se extingue. Conseqüentemente, "tradição" é termo positivo. É bem verdade que Igreja vive não somente de tradição. Vive não menos da ação atual do Espírito Santo. Mas este Espírito não deixa de lembrar de tudo o que Jesus disse (cf. Jo 14.26). Igreja, enquanto cristã, pois, vive de tradição que se formou ao longo da história e que se condensa em credos, confissões, teologia, costumes, ritos, etc. Então, em que consiste o problema?

Na primeira cristandade se desconhecia qualquer conflito nesse tocante. Ainda não havia cânon neotestamentário. As comunidades se orientavam na tradição oral, proveniente dos apóstolos e das primeiras testemunhas. O que veio mudar a situação foi a canonização de uma parte da tradição e a constituição do "Novo Testamento". Agora existia uma tradição normativa ao lado de outra "não-canônica". Também o NT evidentemente contém tradição, sim, ele é (!) tradição. Mas, como cânon, ele se distingue de outras tradições. É superior a estas.

■ Durante muito tempo isto não era sentido como problema. O conflito surge de fato apenas na época da Reforma, quando a Escritura é jogada criticamente contra a Igreja e contra as tradições das quais se alimentava. Desde então se confrontam a Escritura e a tradição eclesiástica, chamada oral. Consiste essa última no imenso cabedal de decisões conciliares, de ritos e concepções teológicas, de determinações clericais e de costumes populares. Abrangem, por exemplo, o culto aos santos, as indulgências, o celibato dos "religiosos", o número dos sacramentos, a jurisdição universal do bispo de Roma. Teriam essas "tradições" a mesma autoridade, respectivamente, o mesmo peso como o texto bíblico? O "sola scriptura" dos reformadores problematiza a tradição cristã posterior e paralela à Bíblia. Eles teriam razão ao exigir que a Igreja deve sujeitar-se à Escritura como norma única de seu discurso e de sua prática?

■ O Concílio de Trento respondeu que não. Colocou em pé de igualdade a Escritura e a Tradição oral confiada à Igreja. [47] Conforme o Concílio, ambas gozam de igual autoridade. [47] É claro que isto redunda na superioridade do magistério eclesiástico por sobre a Escritura. Pois permite que a tradição seja usada como critério interpretativo desta, sendo o magistério a instância decisória. Somente assim foi possível legitimar os dogmas da imaculada conceição e o da assunção de Maria. Muito embora o Concílio Vaticano II tenha enfatizado que o magistério e seus enunciados não podem emancipar-se da base bíblica, não conseguiu definir com clareza essa tão controvertida questão. Permanecem divergências nesse tocante entre luteranos e católicos até hoje.

Também as Igrejas da Reforma sabem a respeito da necessidade e da importância da tradição para a fé. [48] Mas elas se vêem impedidas de atribuir às tradições posteriores uma normatividade superior à da Sagrada Escritura. A tradição bíblica tem função "canônica" para todas as demais tradições, podendo desenvolver força crítica frente à Igreja que as cultiva. Não há como nivelar as tradições. Não possuem todas o mesmo grau de validade mesmo que sejam oficialmente "dogmatizadas". Seja antecipado que o mesmo vale para as próprias tradições incorporadas na Bíblia. Teologia evangélica diferencia entre as tradições e a tradição, sendo que esta última é o próprio Jesus Cristo. [49] A despeito da prerrogativa da Bíblia é ele, Jesus Cristo, o critério último da verdade. Seguirá explicação mais abaixo.

 Notas:

40. É o que responde pela assim chamada "crise do cânon" na atualidade. Assim Hermann STRAHTMANN. Die Krise des Kanons in der Kirche. In: Das Neue Testament als Kanon. Ernst Käsemann (Hg). Göttingen: Vandenhoeck, 1970, p. 41-61.

 

41. Decreta o Concílio de Trento (1545-1563) que compete à mãe Igreja constatar o verdadeiro sentido da Sagrada Escritura. A ninguém se permite interpretá-la de modo contrário à acepção da Igreja e dos santos padres. Cf. Gerhard GLOEGE. Zur Geschichte des Schriftverständnisses. op.cit., p. 284.

 

42. Reside nisto a profunda diferença entre Lutero e os entusiastas de seu tempo. Para o Reformador existe um vínculo indissolúvel entre o Espírito e a palavra. Cf. Kurt Dietrich SCHMIDT. A doutrina de Lutero acerca do Espírito Santo. In: A Presença de Deus na História. São Leopoldo: Sinodal, 1982, p. 77-95; Hermann BRANDT. O Espírito Santo. São Leopoldo: Sinodal, 1977, p. 25 s.

 

43. Bernhard LOHSE. op.cit., p. 196; Carl E. BRAATEN. Locus 1: Prolegômenos à Dogmática Cristã. In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson (eds.) Dogmática Cristã. v. 1., São Leopoldo: Sinodal, 1990, p. 47s.; Inge LÖNNING. Die Heilige Schrift. In: Vilmos Vajta (Hg), Die Evangelisch-Lutherische KircheVergangenheit und Gegenwart. Stuttgart: Ev. Verlagswerk, 1977, p. 110; Dorothea WENDEBOURG; Reinhard BRANDT. Traditionsaufbruch. Hannover: Luth. Verlagshaus, 2001. p.33.

 

44. Ernst KÄSEMANN. Begründet der neutestamentliche Kanon die Einheit der Kirche? In: Ernst Käsemann (Hg.). Das Neue Testament als Kanon. Göttingen: Vandenhoeck, 1970, p. 124-133.

 

45. Na história da interpretação da Bíblia são freqüentes as tendências nessa direção. Elas existem também hoje. Como exemplo, citamos o estudo de Karen L. KING. Canonização e marginalização: Maria de Mágdala. In: Concilium, n. 276, Petrópolis: Vozes, 1998/3, p.38-47. A autora entende ter sido "canonizada" a marginalização da mulher no Novo Testamento. Ora, é claro que o cânon do NT transmite determinada imagem da mulher. Mas será verdade que esta tem qualidade canônica? Perguntamos: Terá sido "canonizada" também a monarquia como regime político pela Bíblia? Importa definir o termo "canônico" em termos evangélicos.

 

46. Johannes FEINER; Lucas VISCHER. O Novo Livro da Fé. A fé cristã comum. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 69-76; Jochen EBER. Sagrada Escritura e Tradição. In: Vox Scripturae, v.5, n.2, 1995, p.179-188; Kurt Dietrich SCHMIDT. O conceito católico de tradição. In: A Presença de Deus na História. op.cit., p.54-62; Hans KÜNG. Teologia a Caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 71s; Gerhard EBELING, Gerhard. "Sola Scriptura" und das Problem der Tradition. In: Das Neue Testament als Kanon. E. Käsemann (ed.). Göttingen: Vandenhoeck, 1970, p. 282-335.

 

47. Conforme Hans KÜNG. Teologia a caminho. op.cit., p.69, também o Concílio Vaticano II não conseguiu dar solução insofismável ao problema, ficando preso à "teoria das duas fontes" (= escritura e tradição). Boa exposição da problemática e proposta digna de criteriosa avaliação ibd. Ademais cf. Hubert KIRCHNER. Wort Gottes, Schrift und Tradition. Ökumenische Studienhefte 9, Göttingen: Vandenhoeck, 1998; Walter KIRCHSCHLÄGER. Scripture and Inspiration. In: Clemens Thoma; Michael Wyschogrod (ed.). Understanding Scripture. Mahwah, N.J.: Paulist Press, 1987, p.36s.

 

48. "A Escritura não nega a tradição", ou seja, não se trata de "elementos em competição". Importa, isto sim, correlacionar corretamente a tradição bíblica, fundamental com a tradição viva na Igreja. Assim Gustaf AULÉN. A fé cristã. São Paulo: ASTE, 1965, p.80s.

 

49. Ellen FLESSEMANN-VAN LEER. Art. Tradition I, evang. Sicht. In: Ökumene Lexikon. H. Krueger, W. Löser, W. Müller-Römheld (Hg.). Frankfurt am Main: O. Lembeck / J. Knecht, 1983, col. 1171-1173.

 

 Gottfried Brakemeier doutorou-se em Göttingen, Alemanha, na área do Novo Testamento, tendo sido professor nessa matéria de 1968 a 1985, em São Leopoldo, RS. Foi presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) de 1985 a 1994, presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) de 1986 a 1990 e presidente da Federação Luterana Mundial (FLM) de 1990 a 1997. Atualmente é professor de Teologia Sistemática e Ecumênica na Escola Superior de Teologia (EST) em São Leopoldo, RS. É autor de numerosos artigos em revistas teológicas nacionais e internacionais e de livros, como Reino de Deus e Esperança Apocalíptica (1984), O 'Socialismo' da Primeira Cristandade (1985), Testemunho da Fé em Tempos Difíceis (1990), O Ser Humano em Busca de Identidade (2002), todos publicados pela Editora Sinodal.

 

 

(Extraído de A autoridade da Bíblia. Gottfried Brakemeier. Editora Sinodal, 2003. São Leopoldo, RS. p.27-32)

 

Abraço a todos

 

Prof. Azenilto G. Brito

Ministério Sola Scriptura

Bessemer, AL, EUA

 

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